
Por Gabriela Lira Borges[1]
Introdução
A alteração promovida pela Lei nº 14.133/2021 relativamente ao requisito da singularidade para contratações por inexigibilidade instaurou discussão sobre a sobrevivência deste requisito dentro do novo cenário normativo.
Vários foram os posicionamentos sobre o tema, os quais, devido sua relevância, merecem ser conhecidos e ponderados para uma atuação segura.
O objetivo deste artigo é apresentar um panorama sobre os mais recentes entendimentos sobre a singularidade enquanto requisito para as contratações diretas por inexigibilidade de licitação.
Considerações sobre o dever de licitar e os caminhos legais para contratar
De início, cabe relembrar que, por força do que dispõe o artigo 37, inciso XXI da Constituição Federal[2], as contratações com a Administração Pública serão antecedidas de licitação[3].
O posicionamento da licitação como regra é clássico em matéria de contratações públicas, porém, é importante registrar que, atualmente, muitas são as vozes que reconhecem que a licitação é apenas um dos caminhos possíveis juntamente com a dispensa e inexigibilidade.
Assim, o que norteará a escolha da forma mais adequada de contratar é a situação fática, concreta. Nesse sentido, registra-se a lição pioneira de Renato Geraldo Mendes:
Na ordem jurídica, toda condição pode ser considerada regra e exceção, pois o que define uma e outra é a situação fática envolvida. Uma necessidade revestida de urgência tornará a licitação sempre uma exceção. No entanto, a mesma necessidade revestida de normalidade tornará a licitação a regra, e o seu afastamento, a exceção.
(…)
Não é adequado entender que, diante de uma hipótese típica de inexigência, o agente público poderia, por exemplo, escolher livremente se faz a licitação ou não. Em dadas situações, mesmo que o agente desejasse realizar a licitação, ele estaria impedido (proibido) de fazê-la. A proibição é da própria ordem jurídica. Não é concebível realizar a licitação sob o argumento de que se deseja privilegiar em todas as contratações o tratamento isonômico. Não é essa a essência da ordem jurídica. Se fosse possível assegurar sempre o tratamento isonômico, não haveria sentido para o constituinte empregar, no enunciado do inc. XXI do art. 37 da CF, a expressão “ressalvados os casos”. Vale dizer, se a igualdade tivesse de ser respeitada em todas as contratações, não faria sentido as hipóteses de inexigência, por exemplo. O atendimento da isonomia não é um valor jurídico que depende da vontade arbitrária do agente público, mas de condição objetiva (fática).[4]
Nesse contexto, o próprio legislador reconhece que em determinadas situações fáticas a licitação não constitui o caminho mais eficaz para o atendimento da necessidade pública. Para tais situações, a legislação prevê contratações diretas, ou seja, realizadas sem licitação. Trata-se dos casos de dispensas e inexigibilidades.
As dispensas de licitação constituem situações fáticas nas quais, a princípio, seria viável o processo licitatório. Entretanto, há outro valor que se sobrepõe à exigência licitatória. Exemplo disso são as situações emergenciais, nas quais em tese seria viável o processo competitivo, porém a premente necessidade autoriza a contratação direta.
As hipóteses que justificam o afastamento da regra constitucional da licitação, mesmo em situações em que ela poderia ser realizada, foram expressamente selecionados pelo legislador e estão tratadas pelo artigo 75 da Lei nº 14.133/2021.
Diversamente, na inexigibilidade, está-se diante de situações fáticas nas quais a licitação não se mostra possível devido à inviabilidade de se estabelecer o processo competitivo que é a premissa inescusável da licitação.
Enquanto as hipóteses de dispensa são previstas em lei de forma taxativa, os casos de inexigibilidade de licitação são previstos de forma exemplificativa e englobam, segundo Marçal Justen Filho, situações de:
- ausência de pluralidade de soluções disponíveis no mercado;
- ausência de pluralidade de fornecedores;
- ausência de objetividade na seleção do objeto a ser contratado decorrente da natureza personalíssima da atuação do particular e
- casos de ausência de definição objetiva do objeto a ser contratado[5].
Requisitos para a contratação por inexigibilidade prevista no artigo 74, inciso III da Lei nº 14.133/2021
Ainda que a Lei nº 14.133/2021 regule de forma exemplificativa os casos de inexigibilidade, ela consigna algumas situações fáticas que, de forma inescusável, configuram uma inexigibilidade. Entre essas situações encontram-se as contratações de serviços técnicos especializados, previstas pelo artigo 74, inciso III, abaixo destacado:
Art. 74. É inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de:
(…)
III – contratação dos seguintes serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação:
a) estudos técnicos, planejamentos, projetos básicos ou projetos executivos;
b) pareceres, perícias e avaliações em geral;
c) assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias;
d) fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços;
e) patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;
f) treinamento e aperfeiçoamento de pessoal;
g) restauração de obras de arte e de bens de valor histórico;
h) controles de qualidade e tecnológico, análises, testes e ensaios de campo e laboratoriais, instrumentação e monitoramento de parâmetros específicos de obras e do meio ambiente e demais serviços de engenharia que se enquadrem no disposto neste inciso;
(…)
§ 3º Para fins do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se de notória especialização o profissional ou a empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto do contrato.
Uma primeira premissa a ser fixada para a correta compreensão dessa hipótese de inexigibilidade é que não está atrelada a um cenário de exclusividade. Nesse sentido, transcreve-se esclarecedora posição doutrinária:
(…) a contratação de serviços técnicos profissionais especializados de natureza singular, cuja aferição é deveras complexa, dado que nela pode haver pluralidade de pessoas capazes de prestar o serviço visado pela Administração, porém sem que se disponha de critérios objetivos para compará-las, pressupondo elevado grau de subjetividade. [6]
O artigo 74, inciso III em destaque autoriza a contratação direta, com inexigibilidade de licitação, observados os seguintes requisitos expressos: a) sejam serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual; b) com profissionais ou empresas de notória especialização.
No que se refere a serviços técnicos e especializados de natureza predominantemente intelectual, Marçal Justen Filho bem esclarece como devem ser compreendidos:
O serviço técnico predominantemente intelectual é aquele que envolve habilidade individual, uma capacitação peculiar, relacionada com potenciais intelectuais personalíssimos. Promove-se uma espécie de “transformação” do conhecimento teórico em prático, o que envolve um processo intermediado pela capacidade humano.
A referência à natureza predominantemente intelectual não implica a ausência de habilidades manuais. Lembre-se que uma nas hipóteses, prevista na al. “g”, inc. III, do art. 74, é a “restauração de obras de arte e de bens de valor histórico”. Serviço dessa natureza exige qualificação não apenas intelectual, mas também a destreza física.[7]
Quanto à notória especialização a própria lei traçou os contornos conceitos. Entretanto, trata-se de conceito indeterminado e ainda objeto de relevante discussão em sede doutrinária e jurisprudencial. Nesse sentido, Joel de Menezes Niebuhr destaca que:
o termo notoriedade induz conceito indeterminado, isto é, variável em grau maior ou menor, em decorrência do que se afere discricionariedade em sua apreciação.
(…)
De acordo com o texto, os agentes administrativos devem analisar o desempenho anterior do profissional, que, por dedução logica, deve ser favorável aos resultados visados pelo contrato.[8]
Conforme ensinamentos da abalizada doutrina acima transcrita, caberá aos agentes públicos realizarem análise discricionária para aferir se o futuro contratado atende ao requisito da notória especialização.
Nesse sentido, entendimento do Tribunal de Contas da União proferido à luz da Lei nº 8666/93, que permanece atual e válido no cenário da Lei nº 14.133/2021:
15. O § 1º do art. 25 da Lei n° 8.666/93 prescreve o seguinte:
“§ 1º Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato”. (grifei)
16. Verifica-se, então, do entendimento desse texto que o Administrador deve, na situação do inciso II do art. 25, escolher o mais adequado à satisfação do objeto. O legislador admitiu, no caso, a existência de outros menos adequados, e colocou, portanto, sob o poder discricionário do Administrador a escolha do contratado, sob a devida e indispensável motivação, inclusive quanto ao preço, ao prazo e, principalmente, o aspecto do interesse público, que deverá estar acima de qualquer outra razão. (TCU, Acórdão nº 204/2005 – Plenário, Data da sessão 09/03/2005, ATA 07/2005 – Plenário)
Conforme se observa, a discricionariedade da análise impõe ao administrador público o poder-dever de realizar, motivadamente, a escolha do fornecedor ou prestador de serviço. Para tanto, poderá o gestor público, valer-se, entre outros, de elementos como os citados pelo PARECER n. 00001/2023/CNLCA/CGU/AGU da Câmara Nacional de Licitações e Contratos Administrativos – CNLCA/DECOR/CGU:
Infere-se que a qualidade de notória especialização não decorre de um juízo subjetivo do administrador público, mas do reconhecimento do profissional ou da empresa, dentro do campo em que atua, como apto a prestar, com excelência, o serviço pretendido. Essa notoriedade, de acordo com a lei, pode ser comprovada de diversas maneiras, como, por exemplo, desempenho anterior de serviço idêntico ou similar ao almejado pela Administração, publicações em periódicos de elevada qualificação acadêmica, reconhecimento do alto nível da equipe técnica que presta o serviço.
52. A lei, como se vê, não traz uma forma estanque de se comprovar a notória especialização, especialmente por prever a possibilidade de sua comprovação por “outros requisitos relacionados com suas atividades”.[9]
No que se refere à singularidade, diversamente da Lei nº 8.666/93, a Lei nº 14.133/2021 não a menciona como requisito para contratação de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, com profissionais de notória especialização.
Sobre esse ponto, interessantes as considerações trazidas por Tatiana Camarão e Maria Fernanda Pires ao tratar sobre a contratação por inexigibilidade de serviços advocatícios.
Segundo referidas autoras, mesmo diante da ausência do termo singularidade na Lei nº 14.133/2021, permanece a exigência de que os serviços a serem contratados exijam de seu prestador conhecimento, habilidade e aptidões específicas. Nesse sentido, excerto do brilhante artigo:
Como já dito, a nova lei excluiu da hipótese de incidência da inexigibilidade de licitação, a necessidade de demonstração de que o serviço deva possuir natureza singular, atenuando as interpretações equivocadas com relação a aplicação dessa expressão, que passou a ser considerada como algo raro e exclusivo.
Em verdade, um serviço singular é aquele que demanda do seu prestador conhecimento aprofundado e, por isso, trata-se de atividade diferenciada, mas jamais única ou exclusiva.
A propósito o Ministro Dias Tóffoli já se manifestou sobre o tema, pontuando que serviços singulares são aqueles que demandam “primor técnico diferenciado, detido por pequena ou individualizada parcela de pessoas, as quais imprimem neles características diferenciadas e pessoais. Trata-se de serviços cuja especialização requer aporte subjetivo, o denominado ‘toque do especialista’, distinto de um para outro, o qual os qualifica como singular, tendo em vista a inviabilidade de comparar com objetividade a técnica pessoal, a subjetividade, a particular experiência de cada qual dos ditos especialistas, falecendo a possibilidade de competição” 1.
A retirada da singularidade como elemento essencial para efeito de enquadramento na hipótese de inexigibilidade de licitação não pode ser desconsiderada pelos aplicadores do direito. Tem uma razão de ser. O legislador infralegal teve o firme propósito de deixar claro que o serviço não precisa ser único, tampouco complexo ou exclusivo, mas, sim, que ele demanda do seu executor conhecimento, habilidade e aptidão específica, adequada e, de plano, comprovável.[10]
Outros doutrinadores advogam a manutenção do requisito da singularidade, compreendida como a necessidade de conhecimentos específicos e diferenciados para atendimento da necessidade. Nessa linha, Marçal Justen Filho[11] e Joel de Menezes Nieburh. Da obra referencial deste último, destaca-se a seguinte conclusão:
O decisivo é que não há inviabilidade de competição para a contratação de serviços que não sejam singulares, que sejam ordinários e comuns, ainda que eventualmente se pretenda contratar profissional ou empresa de notória especialização[12].
Quanto à jurisprudência, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça há entendimento segundo o qual o requisito da singularidade foi suprimido pela Lei nº 14.133/2021 e, em virtude disso, são requisitos da contratação por inexigibilidade apenas a notória especialização do agente contratado e a natureza intelectual do trabalho a ser prestado:
AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PENAL. ART. 89 DA LEI N. 8.666/1993. AÇÃO PENAL. PREFEITO MUNICIPAL. CONTRATAÇÃO DIRETA DE ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA. REQUISITO DE SINGULARIDADE DO SERVIÇO SUPRIMIDO PELA LEI N. 14.133/2021. CARÁTER INTELECTUAL DO TRABALHO ADVOCATÍCIO. PARECER JURÍDICO FAVORÁVEL. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO E DE EFETIVO PREJUÍZO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO.
1. A consumação do crime descrito no art. 89 da Lei n. 8.666/1993, agora disposto no art. 337-E do CP (Lei n. 14.133/2021), exige a demonstração do dolo específico de causar dano ao erário, bem como efetivo prejuízo aos cofres públicos.
2. O crime previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/1993 é norma penal em branco, cujo preceito primário depende da complementação e integração das normas que dispõem sobre hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitações, agora previstas na nova Lei de Licitações (Lei n. 14.133/2021).
3. Dado o princípio da tipicidade estrita, se o objeto a ser contratado estiver entre as hipóteses de dispensa ou de inexigibilidade de licitação, não há falar em crime, por atipicidade da conduta.
4. Conforme disposto no art. 74, III, da Lei n. 14.133/2021 e no art. 3º-A do Estatuto da Advocacia, o requisito da singularidade do serviço advocatício foi suprimido pelo legislador, devendo ser demonstrada a notória especialização do agente contratado e a natureza intelectual do trabalho a ser prestado.
5. A mera existência de corpo jurídico próprio, por si só, não inviabiliza a contratação de advogado externo para a prestação de serviço específico para o ente público.
6. Ausentes o dolo específico e o efetivo prejuízo aos cofres públicos, impõe-se a absolvição do paciente da prática prevista no art. 89 da Lei n. 8.666/1993queria.
7. Agravo regimental desprovido. (STJ, AgRg no HC 669347/SP, Relator para o Acórdão: Ministro João Otávio de Noronha, DJe 14/02/2022.)
Na mesma direção do Superior Tribunal de Justiça, parece ser a manifestação da Advocacia Geral da União no precitado PARECER n. 00001/2023/CNLCA/CGU/AGU da Câmara Nacional de Licitações e Contratos Administrativos – CNLCA/DECOR/CGU:
EMENTA: LEI 14.133, DE 2021. ART. 74, III. INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO. REQUISITOS. DESNECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DE SINGULARIDADE DO SERVIÇO CONTRATADO.
(…)
41. Desse modo, a comprovação da singularidade do serviço, sob a égide da Lei nº 14.133/21, não é mais exigível. Em seu lugar, imputa-se ao gestor público o dever de motivar sua decisão na comprovação da confiança que tem no prestador de serviço por ela escolhido, medida que também encontra fundamento na Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro, cujo art. 20 estabelece:
“Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de
ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
(…)
III. CONCLUSÃO
(…)
f) Em relação ao ponto principal, acerca da não previsão da comprovação da natureza singular do serviço a ser prestado pela empresa ou profissional de notória especialização, pelas razões elencadas neste parecer, manifestamo-nos pela desnecessidade de sua comprovação para a contratação por inexigibilidade de licitação, desde que o administrador adote as cautelas elencadas nas letras “a” a “e” deste item 54 do parecer, de forma que a motivação de seus atos conste expressamente nos autos do procedimento administrativo.
55. Este é o parecer
Quanto ao Tribunal de Contas da União, a nova versão de seu Manual de Licitações e Contratos reconhece a supressão do requisito da singularidade da Lei nº 14.133/2021, porém orienta que devem ser analisadas as características de modo a identificar se são diferenciadas de modo a justificar a contratação de um notório especialista para executá-lo. Nesse sentido, trecho do referido Manual[13]:
A Lei 14.133/2021 estabeleceu três requisitos para essa inexigibilidade: o serviço deve ser técnico especializado de natureza predominantemente intelectual; o contratado deve ser profissional ou empresa de notória especialização [2][14]; e deve ser demonstrado que a contratação de profissional ou empresa com notória especialização é imprescindível à plena satisfação do objeto contratado.
Assim, diferentemente da Lei 8.666/1993[3][15], a Lei 14.133/2021 suprimiu a singularidade do objeto [4][16] como requisito para a inexigibilidade de licitação. Em vez disso, passou a ser necessário demonstrar que o trabalho do profissional renomado é essencial para alcançar completamente o objetivo do contrato.
É importante observar que a contratação direta de um notório especialista depende das características do serviço a ser prestado. Inovações legislativas, como a da Lei 14.039/2020, que vinculou a singularidade dos serviços prestados por advogados e por contadores à notoriedade daqueles que os executam (singularidade subjetiva) [5][17], podem levar à interpretação equivocada de que todo e qualquer serviço prestado por notórios especialistas pode ser contratado por inexigibilidade de licitação.
O que determina a necessidade de notória especialização para executar o serviço são as características diferenciadas desse serviço. Assim, se o objeto for usual, rotineiro ou não exigir a atuação de um profissional ou empresa de notória especialização, não se justifica a contratação direta por inexigibilidade, pois isso poderia violar os princípios da economicidade, da impessoalidade e da isonomia.
Para que essa hipótese de inexigibilidade seja aplicável, deve-se avaliar não somente as características do prestador, mas também as do serviço demandado, a fim de demonstrar que a contratação do profissional ou da empresa de notória especialização é imprescindível à plena satisfação do objeto do contrato, como previsto no art. 6º, inciso XIX, e no art. 74, § 3º, da Lei 14.133/2021.
Considerações finais
A leitura da Lei nº 14.133/2021 não deixa dúvida da supressão do termo singularidade como requisito expresso das contratações por inexigibilidade de licitação de serviços técnicos, predominantemente intelectuais, com profissionais notoriamente especializados.
Mas seria a exclusão do termo singularidade do texto da lei suficiente para extinguir tal requisito neste tipo de contratação?
Com base no arcabouço teórico aqui apresentado e refletindo sobre a notória especialização do profissional, pode-se afirmar que a singularidade permanece, pois é inerente à esta hipótese de inexigibilidade.
De fato, é desarrazoado contratar um profissional notoriamente especializado para executar serviços comuns e triviais, ou seja, serviços que não são singulares.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.
BRASIL. Lei nº 14.039, de 17 de agosto de 2020. Altera a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia), para dispor sobre a atividade privativa de advogado na celebração de acordos ou convenções coletivas de trabalho. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2020.
BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2021.
Jurisprudência:
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Licitações & Contratos: Orientações e Jurisprudência do TCU. 5ª ed. Brasília: TCU, Secretaria-Geral da Presidência, 2024. p. 685.
BRASIL. Câmara Nacional de Licitações e Contratos Administrativos (CNLCA). PARECER nº 00001/2023/CNLCA/CGU/AGU. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/wp-content/uploads/2023/10/PARECER-n.-00001-2023-CNLCA-CGU-AGU-RT.-74-III.-INEXIGIBILIDADE-DE-LICITACAO.-REQUISITOS.pdf. Acesso em: 08.02.2025.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 962.
MENDES, Renato Geraldo. O Processo de Contratação Pública. Fases, Etapas e Atos. Curitiba: Zênite, 2012. p. 229.
NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 5ª ed. São Paulo: Fórum, p. 192.
Legislação:
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). AgRg no HC 669347/SP, Relator para o Acórdão: Ministro João Otávio de Noronha, DJe 14/02/2022.
[1] [1] Mestre em Governança e Planejamento Público pela UTFPR. Especialista em Direito Constitucional pela Unisul. Especialista em Direito Tributário pela Uniderp/Anhanguera. Consultora em Licitações e Contratos Públicos. Produtora de conteúdo. Autora de diversos artigos jurídicos e coautora da obra Horizontes e Perspectivas da Lei nº 14.133/2021.
[2] Art. 37. Omissis
(…)
XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
[4] MENDES, Renato Geraldo. O Processo de Contratação Pública. Fases, Etapas e Atos. Curitiba: Zênite, 2012, p. 229.
[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuter Brasil, 2021, p. 962.
[6] NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. P. 198. 5ª ed. São Paulo: Fórum, p. 184.
[7] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuter Brasil, 2021, p. 976.
[8] NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 5ª ed. São Paulo: Fórum, p. 196.
[9] Parecer de 27 de abril de 2023. Disponível para consulta em https://ronnycharles.com.br/wp-content/uploads/2023/10/PARECER-n.-00001-2023-CNLCA-CGU-AGU-RT.-74-III.-INEXIGIBILIDADE-DE-LICITACAO.-REQUISITOS.pdf.
[10] CAMARÃO, Tatiana; PIRES, Maria Fernanda. A inexigibilidade de licitação para a contratação de serviços jurídicos à luz da nova Lei de Licitações. Disponível em <https://www.novaleilicitacao.com.br/2021/04/07/a-inexigibilidade-de-licitacao-para-a-contratacao-de-servicos-juridicos-a-luz-da-nova-lei-de-licitacoes/>. Acesso em 24.07.2024.
[11] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuter Brasil, 2021, p. 984.
[12] NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. P. 198. 5ª ed. São Paulo: Fórum, p. 192.
[13] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Licitações & Contratos: Orientações e Jurisprudência do TCU / Tribunal de Contas da União. 5ª Edição, Brasília: TCU, Secretaria-Geral da Presidência, 2024, p. 685.
[14] Notória especialização é a qualidade de profissional ou de empresa cujo conceito, no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas atividades, permite inferir que o seu trabalho é essencial e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto do contrato (Lei 14.133/2021, art. 6º, inciso XIX).
[15] Lei 8.666/1993, art. 25, inciso II.
[16] Um serviço de natureza singular é aquele que é complexo, específico e diferenciado em relação a outros do mesmo gênero, não sendo, portanto, comum ou rotineiro. Devido às suas características particulares, tais serviços exigem não apenas qualificação legal e conhecimento especializado, mas também criatividade, engenho e qualidades pessoais que não podem ser julgadas objetivamente. Isso torna a competição inviável, pois não é possível definir critérios para o julgamento objetivo de propostas inerente ao processo licitatório (Enunciados dos Acórdãos TCU 2993/2018-Plenário e 8110/2012-Segunda Câmara; TCE-SP, TC 133.537/026/89, apud Tribunal de Contas da União, 1998, p. 50).
[17] Lei 14.039/2020, arts. 1º e 2º.